Um oi da China, diretamente de São Paulo
Abrindo esta newsletter com minha redação de férias.
Carreguei meu caderninho comigo ao longo da viagem inteira e, inclusive, o critério de desempate na compra de um casaco foi o bolso lateral em que ele cabia perfeitamente. Mas, como magicamente acontece quando quero muito escrever sobre algo, acabei não escrevendo quase nada.
Ainda assim, continuei com muita vontade de fazer esta redação A Minha Experiência na China, uma liçãozinha de casa para não esquecer as coisas que não quero esquecer e para mandar para quem quiser ler um relatório mais completo de viagem. O projeto desta newsletter já está guardado no meu coração e rascunhos há bastante tempo, e acho que é bem adequado começar a falar sobre comer sozinha contando sobre esses 18 dias que passei em Pequim, Chengdu e Chongqing, que devem ter sido a maior quantidade de vezes seguidas que eu comi sozinha até hoje.
Quando eu contava para alguém que tinha resolvido ir para a China, as perguntas costumavam ser as mesmas: Por quê? Sozinha? Sem falar chinês? E confesso que falhei no teste de humildade, já que costumava responder com Porque é muito legal! Sim! Exatamente!
Aí eu cheguei a Pequim.
Pequim, ida e volta
E lá fui atacada por um frio seco esquisito, pelo jetlag que achei que não existia e pelos mistérios do funcionamento do metrô. Tudo bem, tranquilo, já já se resolve, eu acabei de chegar. Mas no dia seguinte tudo continuou levando o triplo do tempo para ser feito, já que eu sequer sabia ler e ia sendo tomada por uma vergonha cada vez maior de estar em um lugar onde só conseguia dizer oi e obrigada, e às vezes parecia que nem era na hora certa. Eu também - essa é pra vocês darem uma risadinha - tinha a sensação desconfortável de que todo mundo era mais bonito, ou pelo menos mais bem arrumado, que eu.
Em dois dias, por um misto de timidez e medo (sim, medo!), eu comi apenas um espetinho de polvo e um de cordeiro (sim, incrível!), uma salsicha (sim, uma salsicha!) e um terço de uma bacia de sopa de tomate com cerca de dois camarões dentro. Escolhas no mínimo questionáveis.
O que os banheiros públicos têm a dizer
É também preciso deixar bem claro que eu não estava vivendo um pesadelo! As vielinhas de tijolo cinza, as coisas que pareciam (e provavelmente eram) muito mais velhas que meu próprio país, a diferença extrema nas caras, nos cheiros, no jeito que o sol bate, tudo isso me deixou emocionada de uma forma muito sincera. Andar por um lugar sem saber o que existe ali pode ser uma grande delícia, exceto quando não é. Mas sabe o que me arrebatou, me ganhou de verdade?
Os banheiros públicos. Como existem tantos deles. Tão bonitinhos, tão presentes. A cada dois quarteirões, uma placa indica uma casinha que não é tão diferente das outras, com privada de chão, sem papel higiênico, e sempre com uma foto da pessoa responsável pela limpeza na entrada. Fiquei tocada não só como alguém de bexiga volátil, mas porque ali foi onde vi pela primeira vez uma coisa que me fez muito feliz ao longo da viagem inteira: a beleza de estar em um lugar em que o espaço externo é público e é comunitário. Para quem saiu de São Paulo, onde não se senta em lugar nenhum fora de casa sem gastar 20 reais, me pareceu que é nisso que mora a beleza socialista da coisa.
Ao longo de todo tempo e de todas as cidades, não vi nenhuma praça vazia. Dei uma choradinha quando encontrei pela primeira vez gente dançando na rua, depois vi que não era algo pontual, que era meio assim que se vivia mesmo. Para esbarrar em alguém jogando cartas, mahjong ou ping-pong, outra pessoa almoçando, criança correndo, cachorro brincando ou uma gangue de velhinhas fazendo tai chi, não era preciso andar muito. E era preciso andar menos ainda para encontrar o banheiro mais próximo.
Para não dizer que não falei dos pandas…
Chengdu tem uma coisa enorme com pandas e com pimenta. Lá, as perguntas imediatas que me faziam se transformaram em outras duas: você já viu os pandas? Já comeu hot pot? Ninguém pareceu se importar muito que eu estivesse sozinha, só quando descobriam que isso inviabilizava um pouco o consumo de hot pot.
Eu viajei para lá porque queria muito ter a experiência da legítima comida de rua de Sichuan, com a legítima pimenta de Sichuan. Edward Said, temos uma ocorrência aqui, mas eu queria comer, e contar que comi, como boa desbravadora, a cabecinha de coelho apimentada que vendem igual coxinha na rua.
A cidade tinha um ar muito diferente de Pequim, e nesse ar tinha um cheiro de um tempero específico… que eu odiei. E me senti uma otária, primeiro por não saber dizer qual era o tempero, segundo porque eu tinha viajado até lá para comer, comer muito, comer de tudo, e depois de cruzar metade do mundo e mais metade de um país, eu descubro que sou o equivalente local da pessoa que não gosta de coentro. Eu nunca comi a cabecinha de coelho, e meu cardápio virou basicamente qualquer coisa que eu pudesse ver, reconhecer e apontar.
E foi aí que encontrei com ela: a intoxicação alimentar. E, ao longo dos dois dias que passei triste no quarto, tentando refinar minha pronúncia de 拉肚子 (lā dù zi) para caso precisasse explicar para um médico o que estava acontecendo, acabei me perguntando algumas vezes Por quê? Sozinha? Sem falar chinês?
Fui embora sem ver pandas e sem comer hot pot.
Mas antes eu fiz uma amiga!
Descobri que, se um estrangeiro está na China, existem poucas chances de ele não ser professor de inglês. Os pequenos grupos de ocidentais que encontrei sempre me contavam que eram aquelas dez, quinze pessoas, em geral homens, em geral americanos ou ingleses, que formavam a comunidade imigrante da cidade, e que todos eles davam aulas em escolas internacionais para crianças ricas locais, que depois se mudariam para os países de origem deles próprios para fazer faculdade.
Não consigo dizer o tamanho da minha felicidade quando, no bar do hostel onde fiquei hospedada, encontrei um desses grupinhos, e pude, depois de uns sete dias sem frases coerentes, finalmente romper meu vipassana involuntário e conversar com alguém. Com várias pessoas! Eu falei tanto que obviamente falei demais!
E foi no grupinho de expatriados do norte global que conheci minha única amiga chinesa, Veronica. Ela também estava um pouco sozinha na cidade, onde morava há três anos, e a gente acabou se encontrando na vontade e na certeza de que existiria pelo menos uma pessoa legal disposta a passar um almoço junto.
Fomos a um restaurante pequenininho, dentro do que parecia um conjunto habitacional, que ela conheceu através de sua única amiga em Chengdu (“she’s a foodie!”), e vivi ali outro momento de felicidade gloriosa: alguém fez o pedido por mim. Foi num os meus maiores inimigos naqueles dias, aqueles cardápios de papel que você vai assinalando tudo o que quer, e chegou uma sopa vermelha, não tão apimentada quanto parecia, cheia de vegetais e carne. O Tal Tempero estava lá, mas dessa vez eu gostei. Veronica me contou que uma vez foi a um restaurante de hot pot sozinha, e colocaram um urso de pelúcia para sentar com ela.
Os ossinhos da cidade são de mel e ouro*
Quando cheguei em Chongqing, demorei mais ou menos quarenta minutos para encontrar meu hotel, que estava a apenas 100 metros da estação de onde saí. O motivo? Cada vez que eu abria o GPS, ele me dizia que eu estava em um lugar diferente. A cidade é construída em tantas camadas que engana tecnologias que eu julgava oniscientes, deixando o ponteirinho bobo tentando se localizar naquele terreno onde você pode estar no térreo e no vigésimo segundo andar ao mesmo (com certeza você já viu essa no tiktok!).
A coisa com Chongqing é pegar tudo que compõe uma cidade e exagerar. Tem prédio? Tem cinco camadas deles se sobrepondo, e todos têm pelo menos vinte andares. Tem metrô? Tem para caralho, tem até dentro de prédio. Tem via expressa? Olha, boa sorte se pegar a saída errada, tem tantas que talvez você nunca mais volte para casa. Tem gente? 30 milhões em um lugar que boa parte de nós nunca ouviu falar quando o assunto é China.
E essa cidade em que o esqueleto de infraestrutura é tão exposto que vira cartão postal ganhou meu coração. Sam Kriss, um dos meus substackers favoritos, disse que Chongqing é o que Nova York sonhava em ser, e lá, quando comparei dimensões com São Paulo, eu tive pela primeira vez na vida a impressão de que vim da roça.
Apesar de tudo isso, Chongqing não é hostil. Ela é assustadora, mas não hostil. As pessoas são doces, as encostas viram parques, a comida é deliciosa. Ninguém anda de bicicleta, mas nada é perfeito.
Eu não voltei de viagem com grandes teses políticas (exceto depois de algumas cervejas), mas tenho uma impressão quase espiritual que para buscar a essência do socialismo com características chinesas, dá para olhar para uma pequena alegoria: para ir de uma camada de cidade a outra, às vezes a gente procura um prédio privado, entra no elevador e decide se quer ir para rua de cima ou para a rua de baixo.
Uma lista de poucas palavras (e algumas fotos) do que mais gostei de comer
Você provavelmente veio parar aqui por isso e deve estar decepcionado porque só falei sobre cidades, sensações e diarreia, então aqui vai uma lista curta de Coisas Boas Demais Para Comer Uma Só Vez**:
Espetinho de cordeiro de Xinjiang (新疆烤串) que vem normalmente em espeto de metal ou um que parece um galho de tão grosso. É passado em um tempero com muita pimenta, cominho e gergelim, como se fosse farofa.
Uma panquequinha frita (馅饼, xiàn bǐng) ,que pode ser recheada de proteínas diversas e é meio um prato de café da manhã. Comi uma de carne com vegetais que foi uma das coisas que quis imitar imediatamente depois que voltei para casa.
Macarrões e massas ensopados em geral, mas este aqui (抄手, chāoshǒu) vendido por uma senhorinha no bairro de arte de Chongqing foi um abraço de mãe, ainda que ela tenha dado risada quando me viu chorando com a pimenta. Apesar das lágrimas, é um caldo apimentado do jeito certo, com guiozas de carne de porco e grão de bico frito bem crocante.
Hot pot de Chongqing que é tão apimentado que limpa seus pecados de vidas passadas. Fui sozinha e saí fugida ali pelo primeiro terço do prato, mas deve ser incrível ir com amigos e comer muito.
Frango apimentado de Sichuan (辣子鸡, la zi ji), que é, bem, frango, e apimentado, e de Sichuan. É literalmente frango frito bem crocantinho no meio de um monte de pimenta. Divino. Esse eu comi num restaurante chique, mas tem em todo lugar.
Frutos do mar (ostra, camarão, vieira e abalone) com um molhinho que é basicamente óleo fervendo com muito alho, cebolinha e pimenta. Acho que foi minha coisa favorita.
Isso aqui que parecia um lamen de camarão, com um caldo de peixe consistente, quase leitoso, muito diferente da minha ideia de caldo de peixe (que é provavelmente algo mais próximo de água de atum em lata)
Uma raspadinha (刨冰, bàobīng) com bolinhas que parecem mochi, pedaços de fruta, calda, amendoim, feijão e tudo que há de bom. Acho que se tivesse que escolher uma coisa que comi lá para comer sempre aqui, seria isso. Tem uma versão coreana pertinho de casa, mas é um pouco menos gostosa.
Pato de Pequim (北京烤鸭, Běi jīng kǎo yā), que está em todo lugar da cidade, mas com o detalhe traiçoeiro de que são pouquíssimos os restaurantes onde as porções são individuais. Fui abençoada em meu último dia porque encontrei um que fosse pequeno, com proporção perfeita de carne macia, gordurinha e pele crocante, que acho que é o que faz o pato ser de Pequim.
Algo sobre os trens
Sim, a malha ferroviária é mesmo incrível. Trem bala ou não.
Pequim, ida e volta
Quando voltei a Pequim, tive um breve momento de pânico. Meu Deus, minha lua de mel com Chongqing acabou! O que vou fazer de novo na cidade que senti tanto medo?
Mas aí eu ofereço a você, que leu muitos caracteres até aqui, este momento de redenção na minha jornada do herói. Depois desse primeiro cagaço, me vi refeita, com coragem de pedir comida sem saber ler cardápios, resolvendo meus conflitos com o metrô (esse é um texto a parte), passeando pela cidade, me emocionando de bicicleta, e com muito, muito menos frio que nos primeiros dias. Fui recompensada com o delicioso pato que falei ali em cima, com um passeio por um grande CEASA de antiguidades chamado Panjiayuan (潘家园旧货市场) e com a possibilidade de dar risada em vez de chorar de desespero quando vi que tinha ido parar dentro da garagem do ônibus que peguei para o lado errado - aproveitei e almocei em um restaurante uyghur lá perto. Comecei a me sentir quase em casa.
E eu fui embora de Pequim.
Obrigada, adeus
Parece que aquilo que a gente aprende na primeira meia hora do Básico 1 de mandarim*** como sendo um obrigada, o xiè xiè (谢谢), não é algo que se diga o tempo inteiro, para todo mundo. Eu, que funciono à base da santíssima trindade obrigada-desculpa-licença, confesso que fiquei sem chão a primeira vez em que responderam meu agradecimento muito sincero (eu tinha conseguido finalmente comprar ÁGUA!) com um bye bye. Depois da quinta vez, parei de me preocupar. Depois da décima, passei a achar muita graça. Na volta, virou minha anedota de viagem favorita.
No fim, o que ganhamos são as comidas que fazemos para nossos amigos
Meu maior prazer depois de voltar para casa tem sido mostrar minha nova coleção de pimentas, oferecer um pouquinho de cada uma, explicar que essa adormece a boca, essa aqui arde bastante, essa outra mais ainda, esse pozinho aqui parece zaatar e, claro, também arde muito.
Não aprendi a cozinhar com elas ainda, mas tenho tentado. Aos poucos vou chamando as pessoas em casa, pego dicas de algum blog que se compromete a cozinhar a legítima comida de Sichuan, procuro substitutos para o que esqueci de trazer e fico feliz quando, olha só, tá parecido com o que comi lá! Se você é meu amigo, sua hora vai chegar - entenda como promessa ou como ameaça. Os doces já acabaram, mas ainda tem umas tirinhas de carne seca de aperitivo****.
EPÍLOGO: O homem faz planos e Deus ri
Antes de viajar, já com as passagens compradas, toda vez que eu ficava desanimada - ou, pelo contrário, muito animada - eu abria um mapa da China, o reddit, perfis de guias turísticos locais, perfis com o selo Mídia controlada pelo Estado: China, o trip.com, e aumentava minha lista de Lugares Que Quero Muito Conhecer. Esse é, inclusive, um excelente método para fazer uma viagem cara durar mais, mas é preciso encará-lo com alguma graça quando, como no ditado judaico ali do começo (talvez não seja exatamente assim, mas é esse o espírito), Deus dá uma risadinha dos seus planos.
Assim, termino esse texto com a lista dos lugares que, seja por intoxicação alimentar, por preguiça, por não ter feito uma conta de WeChat ou porque esqueci, acabei não indo, mas acho que são lindos ainda assim:
Cidade proibida (vi só por fora)
O escritório do LAVA Beijing que é um estúdio de design que eu amo
—
*É uma referência a esse poema lindo da Matilde Campilho.
**Por outro lado, coisas ruins demais para comer uma única vez: fruta falsa de Chongqing, industrializados com cinco camadas de plástico de embalagem, um chá que parecia mingau, café em geral.
***Meu amigo Arabel tentou me confortar dizendo que mandarim nem existe, é invenção do ocidente.
****Não tem mais.
Maravilhoso 👏🏾
Amiga, eu te amo TANTO!!!!! Fico TÃO feliz que você fez essa viagem! E seu relato dá vontade de ir pra China e se foder também, o que é um elogio (caso tenha ficado ambíguo). Eu quero experimentar todas as pimentas que você trouxe!!! Te amo 💖